sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Diante de um juiz, agressor fica calado e só mulher fala em audiências de MG


A mulher fala, o homem escuta. Essa não é a regra entre agressores e vítimas de violência doméstica, mas foi a chave encontrada por um juiz de Belo Horizonte para reverter o quadro.

A chamada audiência de fortalecimento é aplicada nos casos em que o homem descumpre medidas protetivas estabelecidas pela Justiça, como manter distância da ex-mulher e não frequentar os mesmos locais que ela.

"São relações em que a gente observa extremo machismo, em que a mulher não tem autonomia. Como reverter essa submissão? Invertendo as posições", diz Marcelo Gonçalves de Paula, juiz titular da 14ª Vara Criminal de BH.

A audiência de fortalecimento é constituída na hora em que acontece. Agressor e vítima, a princípio, são convocados para uma oitiva tradicional, em que são ouvidos separadamente. A mulher entra primeiro, e o juiz pergunta se ela quer falar o que sente na frente do ex-companheiro.

Se a mulher topa, o homem entra na sala e, só nesse momento, é avisado de que não pode falar nada e está ali para ouvi-la. As mulheres relatam, então, um histórico de violências –algumas levam até anotações com datas e casos.

"O homem tem na cabeça que a mulher não é capaz de enfrentá-lo. Quando ele está sentadinho ali preparado para atacar, é advertido. É o primeiro grande choque: estar numa relação contrária", diz o juiz de Belo Horizonte.

REINCIDÊNCIA
De Paula teve a ideia e começou a aplicar as audiências em fevereiro. Foram 19 encontros até agora, todos sem reincidência de violação a medidas protetivas.
"Eu só me vi divorciada mesmo a partir dessa audiência", diz Antônia Teixeira, 47, que se separou em 2013, mas continuou perseguida pelo ex-marido no supermercado e na padaria até junho deste ano.

Ele chegou a ameaçá-la com uma faca e com um carro. Passou a usar tornozeleira eletrônica, mas descumpriu a distância mínima para ela 19 vezes. A cada vibração do aparelho de monitoramento, Antônia tinha mais medo e ainda sentia-se presa.

"Na audiência, eu pude desabafar. Quando eu abria a boca para falar, ele vinha pra cima. Então, em 25 anos, fiquei calada", afirma. "Disse pra ele que acabou. Que tenho direito de viver minha vida e ele, de viver a dele."

Antônia era professora do ensino fundamental de uma escola pública, sofria crises de pressão alta e tomava sete remédios controlados. Chegou a levar um chute e ter café derramado na barriga na última gravidez –foram mais de 25 boletins de ocorrência.

"Aquilo me doeu muito, porque dói na alma", afirma ela. O ex-marido costumava gritar e xingá-la de vagabunda. Desde 2008, havia uma medida protetiva determinada contra ele, mas Antônia não sabia.

RESTAURAÇÃO
Apenas em 2016, foram quase 206 mil casos de violência contra mulheres registrados no país inteiro.

A medida adotada pelo magistrado é o embrião da justiça restaurativa aplicada a esses casos em Belo Horizonte. A prática foi regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça em 2016 e é usada também nos Estados do Paraná e do Rio Grande do Sul.

"Saímos de uma visão em que a mulher e o agressor deveriam ser isolados e estamos em um novo momento, em que os envolvidos precisam participar, dialogar e são fundamentais para encontrar uma solução pacificadora", afirma o juiz De Paula.

O processo de restauração não termina na audiência. Depois do primeiro passo, o ex-marido é obrigado a frequentar oito sessões de reflexão em grupo do Projeto Dialogar, da Polícia Civil, que oferece também assistência psicológica e tratamento para drogas e álcool. O não comparecimento pode levar à prisão.

A mulher, por sua vez, é encaminhada para o Centro Risoleta Neves, da Secretaria de Direitos Humanos, onde recebe acompanhamento de assistentes sociais e psicólogos. "A vítima deixa de ser vítima e passa a ser protagonista da sua recuperação", diz o juiz.

Como resultado, se homem e mulher rompem a submissão e estabelecem uma relação harmoniosa, as medidas protetivas são retiradas.

"Ambos precisam ter um trabalho de desconstrução para estabelecer novos padrões de pensamento e conduta. Precisamos tratar esses seres humanos que estão doentes para equilibrarem suas ações e seguirem em paz", afirma De Paula.

Antônia cursa direito e faz estágio no Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública, ajudando outras mulheres vítimas. "Só quem sofre isso sabe como é. Eu conto minha história pra elas verem que é possível não depender de homem", afirma.

Ao lado dos quatro filhos de dois casamentos –de 29, 28, 23 e 8 anos–, Antônia finalmente respira aliviada. "Tirou uma coisa de dentro do meu peito. Hoje eu canto, hoje eu vejo o sol." 


Fonte: Folha de São Paulo -

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