A Justiça será cada vez mais insensível, impessoal e distante
A advocacia não vai desaparecer, pelo menos no horizonte próximo, mas a inteligência artificial ameaça a profissão tal qual a conhecemos há séculos. Robôs são desenvolvidos para elaborar petições, acompanhar processos, escrutinar a jurisprudência e orientar condutas.
Empresas já oferecem a escritórios a automação de teses e fórmulas de cálculo para a busca da restituição de tributos indevidamente cobrados. Em vez de um exército de jovens advogados elaborando petições repetitivas, eventualmente ineptas, basta o preenchimento do formulário e a ação estará pronta.
Em cenários não corporativistas, o consumidor, por exemplo, pode reclamar diretamente direitos violados a partir de uma plataforma judicial virtual, sem a intermediação burocrática e prolixa do bacharel.
Quando o robô substituir o chapeiro na fritura de hambúrgueres, as vantagens para o patrão serão significativas: o chapeiro fica doente, acorda de mau humor, conversa durante o serviço, tem pausa para descanso; o robô não erra o ponto da carne desejada pelo freguês. Flippy, robô desenvolvido no Vale do Silício e apresentado em dezembro por reportagem da Folha, prepara 12 hambúrgueres simultaneamente e limpa a grelha sem reclamar.
O impacto no Brasil será gigantesco. Nenhum país do mundo tem tantas faculdades de direito, mais de 1.500 (nos Estados Unidos há 237), e tantos bacharéis despreparados para o mercado e para o futuro. Segundo Maurício Gieseler, que monitora a criação dos cursos, o governo Temer autorizou a abertura de 96 novas instituições de ensino jurídico entre 29 de agosto e 6 de novembro.
O robô advogado não esperneia, não faz chicana e se encaixa perfeitamente no quebra-cabeça da justiça impessoal.
Processos eletrônicos conspiram contra o princípio da publicidade. Podem ser deletados num piscar de olhos. Graus crescentes de sigilo reduzem a capacidade de observação externa do contraditório e das provas, tornando ainda mais kafkiano o poder da magistratura, agora exercido por assessores anônimos.
Idealizado para acelerar a tomada de decisões, o julgamento virtual se espalha pelos tribunais. O plenário do Supremo Tribunal Federal, durante a presidência de Cármen Lúcia (2016-2018), julgou 615 processos em sessões presenciais e 4.598 processos em sessões virtuais: a votação começa na sexta-feira e o ministro que não se pronunciar até quinta-feira da semana seguinte terá o "voto" contabilizado como favorável ao relator.
Repleto de ministros birutas, o governo Bolsonaro, pela voz aparentemente sóbria de Sergio Moro, quer instituir, por reforma legislativa, o chamado "plea bargain", sistema existente na Justiça norte-americana e identificado por muitos como uma fábrica de presos, ainda que inocentes: para evitar vereditos extremos, o réu se declara culpado e "negocia" a pena com o órgão acusador.
A proposta de Moro foi recebida com entusiasmo por juízes e promotores, como medida capaz de conter a criminalidade e desafogar o Judiciário. Mas a negociação da pena faz sentido teórico no sistema judicial caríssimo dos EUA: todo julgamento é realizado pelo júri, marcado pela oralidade e pelos rituais que o cinema difunde.
Cada vez mais distante do réu, da sua motivação e da sua personalidade, cada vez mais sensível ao preconceito e ao rancor público, a Justiça criminal vai se consolidando como um silencioso mecanismo para abater e triturar seres humanos.
lfcarvalhofilho@uol.com.br
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