Descobrir. Está aí um verbo que me permito conjugar sempre. Ele pressupõe que ninguém deve se sentir constrangido por não saber alguma coisa. Sua essência é exatamente esta: a novidade, a delícia de descortinar o novo.
Nesse caso, o novo para mim é a escritora gaúcha Martha Medeiros, minha mais recente (e confesso, tardia) descoberta literária. Foi por meio do livro “Que Ninguém nos Ouça”, de Leila Ferreira e Cris Guerra, que pela primeira vez li um texto dela, que assina o prefácio.
Eu, mais tendencioso à leitura para o espírito, me rendi à força das palavras desta brasileira de Porto Alegre: um jeito leve e intenso, passional e, ao mesmo tempo, equilibrado de escrever sobre o mundo, as relações, a natureza, as pessoas, a poesia. De mostrar que o prazer está na invenção da alegria que criamos para nós mesmos. De que temos de fazer o necessário para sermos felizes. De escancarar que a felicidade é algo tão simples que pode passar sem ser percebida.
Martha é pólvora. É ligada na tomada, mas sabe bem onde gasta e direciona sua energia. Questiona a felicidade sem sabotá-la, pede um olhar treinado para que a encontremos na delicadeza das coisas, desanuviando-nos da rudeza dos vícios. “A vida não é um questionário de Proust. Você não precisa ter de responder ao mundo quais são as suas qualidades, sua cor preferida, seu prato favorito, que bicho seria. Que mania de se autoconhecer. Chega de se autoconhecer. Você é o que é, um imperfeito bem-intencionado e que muda de opinião sem a menor culpa. Feliz por nada talvez seja isso.”
Do seu primeiro livro, “Striptease”, de 1985, até o mais recente “Um Lugar na Janela 2”, de 2016, a ecologia da felicidade é tema recorrente nas obras da escritora, que também é colunista do jornal Zero Hora. Martha nos aponta o caminho em que, no fim das contas, felicidade mesmo é viver. E dá um conselho: “Viver é a nossa única opção real. Antes de nascermos, era o nada. Depois, virá mais uma infinidade de nada. Essa merrequinha de tempo entre os dois nadas é um presentaço. Não seja louco de desperdiçar”. Eu não sou, Martha. E acredito que a maioria das pessoas gosta, e muito, de viver.
Descobrir e gostar. Estão aí dois verbos que você, caro leitor, cara leitora, facilmente encontrará cada vez que abrir um livro de Martha Medeiros.
Aprecie a seguir o chimarrão literário de boas reflexões e pensamentos que a escritora tem nos
oferecido:
Viver
“Viver é uma arte. A arte de conversar com desconhecidos, por exemplo. De se revelar em poucas palavras para uma pessoa que não sabe nada sobre você, e você nada sobre ela, e estabelecer um contato que seja agradável e frutífero para ambas as partes, evitando silêncios constrangedores ou, pior, o sono.”
Tempo
“O tempo não cura tudo. Aliás, o tempo não cura nada. O tempo apenas tira o incurável do centro das atenções.”
Virgindade
“Quando falamos em virgindade, logo pensamos em sexo, e a partir do dia que o experimentamos, o mundo parece perder seu mistério maior. Não somos mais virgens – que ilusão de maturidade.”
“Virgindade é um conceito um tanto mais elástico. Somos virgens antes de voltar sozinhos do colégio pela primeira vez. Somos virgens antes do primeiro gole de vinho. Somos virgens antes de conhecer Nova York. Somos virgens antes do primeiro salário. E podemos já estar transando há anos e permanecermos virgens diante de um novo amor.”
Morte
“Morre lentamente quem não troca de ideias, não troca de discurso, evita as próprias contradições.”
“Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na vida, fugir de conselhos sensatos.”
“Morre lentamente quem passa os dias se queixando da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe. Morre muita gente lentamente, e esta é a morte mais ingrata e traiçoeira, pois quando ela se aproxima de verdade, aí já estamos muito destreinados para percorrer o pouco tempo restante.”
Lazer e prazer
“São duas palavras que rimam e se assemelham no significado, mas não se substituem. É muito mais fácil conquistar o lazer do que o prazer. Lazer é assistir a um show, cuidar de um jardim, ouvir um disco, namorar, bater papo. Lazer é tudo o que não é dever.”
“O prazer não está em dedicar um tempo programado para o ócio. O prazer é residente. Está dentro de nós, na maneira como a gente se relaciona com o mundo.”
“O prazer está em tudo o que fazemos sem atender a pedidos. Está no silêncio, no espírito, está menos na mão única e mais na mão dupla.”
Inveja
“Apenas se sentem agredidos aqueles que te invejam.”
Idade
“Não importa a idade que temos, há sempre um momento em que é preciso chamar um adulto.”
Afinidade
“É importante cultivar afinidades, mas as desafinações ensinam bastante. No mínimo, nos fazem dar boas risadas. Vale amizade com executivo e com office-boy, com solteiros e casados, meninas e mulheraços, gente que torce para outro time e vota em outro partido. Vale sempre que houver troca.”
Felicidade
“Ser feliz de uma forma realista é fazer o possível e aceitar o improvável.”
“Felicidade é a combinação de sorte com escolhas bem feitas.”
Vida
“A vida não é um game onde só quem testa seus limites é que leva o prêmio. Não sejamos vítimas ingênuas desta tal competitividade. Se a meta está alta demais, reduza-a. Se você não está de acordo com as regras, demita-se. Invente seu próprio jogo.”
“Pessoas com vidas interessantes não têm fricote. Elas trocam de cidade. Investem em projeto sem garantia. Interessam-se por gente que é o oposto delas. Pedem demissão sem ter outro emprego em vista. Aceitam um convite para fazer o que nunca fizeram. Estão dispostas a mudar de cor preferida, de prato predileto. Começam do zero inúmeras vezes. Não se assustam com a passagem do tempo. Sobem no palco, tosam o cabelo, fazem loucuras por amor, compram passagens só de ida.”
“Uma vida sem amigos é uma vida vazia. O mundo é muito maior que a sala e a cozinha do nosso apartamento. A arte proporciona um sem-número de viagens essenciais ao espírito. Amar é disparado a coisa mais importante que existe.”
“Desmediocrize sua vida. Procure seus ‘desaparecidos’, resgate seus afetos. Aprenda com quem tiver algo a ensinar, e ensine algo àqueles que estão engessados em suas teses de certo e errado.”
O novo
“Procura-se, vivo: o novo. Morto não interessa. Procura-se a novidade que vai fazer o povo refletir, questionar, enlouquecer. Algo nunca visto, original, que desestruture, surpreenda, revolucione.”
“Raios, temos que ser novos. Não se pode repetir fórmulas, não se pode reprisar o que dá certo, ficam proibidos todos os prazeres conhecidos. Música, literatura, cinema, moda, reinventem-se. Ai de quem não ousar.”
“Fazer diferente, impressionar. Nada de ser lírico, nada de ser cru, transgrida, provoque a crítica, provoque o público, não caia no gosto popular, não seja excêntrico, não seja petulante, não seja o mesmo, não tenha estilo, não finja ser o que não é, não seja excessivamente confessional.”
“Reclamar do tédio é fácil, difícil é levantar da cadeira para fazer alguma coisa que nunca se fez.”
O mundo
“O mundo não se importa se estamos desagasalhados e passando fome. Não liga se virarmos a noite na rua, não dá a mínima se estamos acompanhados por maus elementos. O mundo quer defender o seu, não o nosso.”
“O mundo quer que a gente fique horas no telefone, torrando dinheiro. Quer que a gente case logo e compre um apartamento que vai nos deixar endividados por vinte anos. O mundo quer que a gente ande na moda, que a gente troque de carro, que a gente tenha boa aparência e estoure o cartão de crédito.”
“O mundo nos olha superficialmente. Não consegue enxergar através. Não detecta nossa tristeza, nosso queixo que treme, nosso abatimento.”
Deus
“Deus não está em promoção, se exibindo por aí. Ele escolhe, dentro do mais rigoroso critério, os momentos de aparecer pra gente. Não sendo visível aos olhos, ele dá preferência à sensibilidade como via de acesso a nós. Não sou católica praticante e ritualística – não vou à missa. Mas valorizo essas aparições como se fosse a chegada de uma visita ilustre, que me dá sossego à alma.”
“Deus me aparece – muito! – quando estou em frente ao mar. Tivemos um papo longo, cerca de um mês atrás, quando havia somente as ondas entre mim e Ele. A gente se entende em meio ao azul, que seria a cor de Deus, se ele tivesse uma.”
Abraço
“Somando os prós e os contras, as boas e más opções, onde, afinal, é o melhor lugar do mundo? Que lugar melhor para uma criança, para um idoso, para uma mulher apaixonada, para um adolescente com medo, para um doente, para alguém solitário? Dentro de um abraço é sempre quente, é sempre seguro. Dentro de um abraço não se ouve o tic-tac dos relógios e, se faltar luz, tanto melhor. Tudo o que você pensa e sofre, dentro de um abraço se dissolve.”
Gentileza
“Seja gentil, mas não a ponto de perder o tino. Se tiver que ferir suscetibilidades para salvar sua pele, paciência. Atravesse a rua. Desça pela escada. Dê no pé.
Sucesso
“Sucesso é chegar em casa com vida.”
Discrição
“Não fale, não conte detalhes, não satisfaça a curiosidade alheia. A imaginação dos outros já é difamatória que chegue.”
Liberdade
“Não subestime os outros, nem os idolatre demais. Seja educada, mas não certinha. Faça coisas que nunca imaginou antes. Não minta, nem conte toda a verdade. Dance sozinha quando ninguém estiver olhando. Divirta-se enquanto seu lobo não vem.”
“Tenho juízo, mas não faço tudo certo. Afinal, todo paraíso precisa de um pouco de inferno.”
Fonte: REVISTA ECOLÒGICO